quarta-feira, 30 de maio de 2012

Não foi apenas um sonho

por Gláucia Grigolo



Humanização – ato ou efeito de humanizar. Humanar, inspirar a humanidade. Adoçar, suavizar, civilizar. Tornar-se humano, compadecer.

Nunca antes estas palavras fizeram tanto sentido pra mim. No primeiro dia do 6º Itajaí em Cartaz isso veio à tona: “o foco deste evento é a humanização”, me disse Valéria, uma das coordenadoras. E a regra teve que ser seguida, pois não havia como escapar. Um batalhão de pessoas sorridentes chegavam a todos os momentos. Amigos de muitos anos, novos amigos, jovens e nem tão jovens amantes do teatro que por uma semana estiveram juntos num festival que parecia um sonho...

É possível um coletivo de artistas, com tantas diferenças estéticas e poéticas unirem-se e trabalharem incansavelmente para o bem comum? Como eles tem tanta energia, dentro e fora da cena? Alguma coisa que colocaram na água que abastece a cidade? Uma espécie de super estimulador? Não sei o que foi, mas vi a energia pulsar.

É admirável ver a solidariedade dos grupos unidos para estabelecer uma produção teatral permanente que alimente os espaços culturais da cidade, escolas, praças e ruas. Grupos filiados à Rede Itajaiense de Teatro que partem do principio que a formação de plateia e o diálogo com a comunidade são essenciais para a construção de suas trajetórias. Coletivos que deixam de lado quaisquer diferenças para trabalhar em prol de algo muito maior que seus interesses particulares.

Ultimamente tenho visto pessoas cada dia mais voltadas ao seu interesse particular, ao próprio bem estar, às suas necessidades. Poucas conseguem desprender-se do mundo individual e olhar para o coletivo, porque a vida nos empurra a resolver os problemas, a ganhar dinheiro, a pagar as contas, a responder imediatamente a situações de stress e de perigo. Onde está o frescor da vida quando estamos imersos no caos? Certamente não conseguimos vê-lo, porque as tarefas nos tomam todo o tempo. Resta pouco tempo para humanizar, para olhar quem está ao lado.

Recebi a incumbência de socializar com os colegas, de desfrutar de momentos em conjunto, de não sentar sempre na mesma mesa e conversar com as mesmas pessoas. Misturar, sobrepor, compreender, olhar, ouvir, sentir. Aprendizado de cada dia. Um dia de cada vez.

E diretamente do túnel do tempo as imagens retornam... Então chego à conclusão de que não foi sonho, mas a realidade implantada por duas mulheres incansáveis, talentosas e organizadas que atendem por Valéria de Oliveira e Sandra Knoll. Como tantos anjos que estiveram presentes durante a semana, ambas conseguiram conquistar meu coração para sempre! Fiquei encantada, extasiada, feliz, sem voz e quase sem nariz...e com a certeza de que quero experimentar mais uma vez.

A Menina Boba


 por Barbara Biscaro


Ultimamente tenho pensado que a vida se apresenta a mim através de sobreposições, de misturas. Superando uma imagem infantil que as coisas se seguiam, assim como eu pensava em uma lógica de menina que o dia seguia a noite que seguia o dia novamente, e a única sobreposição a qual me permitia pensar era que quando era noite no Brasil, em minha casa, e eu tinha medo do escuro, no Japão era dia, segundo a minha mãe, e eu então morria de inveja das crianças do Japão, sem nem pensar que em algum momento a noite também chegava para elas. 

Hoje, tudo para mim parece acontecer ao mesmo tempo. Sem brechas para respirar, sem chance para nem mesmo aproveitar certos momentos, coisas boas e ruins, sonhos concretizados e surpresas da vida se enlaçam, de forma tão intensa, que eu mesma já não consigo separar mais nada. Novamente superando uma lógica anterior, na qual cada gaveta levava um conteúdo separado, agora minha vida parece um grande armário bagunçado, onde o vestido está em cima das panelas e os calçados disputam espaço com os livros, ali bem ao lado das minhas plantas que morreram por falta de água.  É nesta metáfora que se enlaçam o processo de criação e agora de estréia de A Menina Boba, meu novo-velho solo teatral e a escrita de minha dissertação de mestrado, emaranhada com todo o meu corpo e minha voz, transbordando em uma escrita por vezes nada lógica, mas afinal, bastante minha, e isso por enquanto me basta.

Muitas pessoas me questionam sobre a decisão de dirigir a mim mesma em meus trabalhos teatrais. Com opiniões boas ou ruins (geralmente desconfiadas), elas me perguntam por quê tanta solidão nestes processos, e eu ao invés de responder, vou para casa e penso. Penso que as coisas que quero dizer, o modo como eu quero dizer, são parte íntima da minha história como artista, e confesso que sempre tive medo de no contato com um diretor ter que abrir mão de concretizar minhas inquietações para me adequar ao outro. Egoísmo, talvez.

Lendo Roland Barthes, comecei a refletir sobre as relações entre voz, palavra e poder, e junto com tudo isso, uma reflexão também sobre escrituras teatrais de mulheres artistas. Mais uma vez vou citar Lúcia Sander em meu texto, naquela fatídica manhã em Buenos Aires, em que ela dentre mil coisas instigantes que falou, me fez perceber que uma dramaturgia criada por mulheres (ou em muitos casos por homens também) poderia escolher estar pautada pela fragilidade, pelo etéreo, e dessa forma, por um erro inicial, uma lacuna incompreensível, já estivesse fadada a uma certa invisibilidade, pois infelizmente vivemos em um mundo no qual ser forte é um atributo assaz fundamental.

Barthes frisa que a palavra é poder, instrumento inegável de força. Em nossa cultura, a palavra escrita, discursada, televisionada, tem poder hipnótico, e com muito pouco, tenta imprimir verdades indiscutíveis. Se a organização da palavra enquanto discurso (seja através da retórica, da escrita, da transcrição) está ligada ao poder, no sentido em que a domesticação do discurso serve ao poder vigente, ao sistema, às instituições dominantes, o que seria então essa palavra selvagem, a abdicação do poder em um deslocamento das funções da voz neste processo de construção contínuo de discursos?

As artes não discursivas, como a dança ou a música (principalmente instrumental), consideradas mais ‘frágeis’ em seu conteúdo, menos politizadas, menos dominadas por discursos, quando se fundem a uma dramaturgia teatral e preservam suas formas iniciais, tendem, a desestabilizar os discursos. Bem no meio de uma fala, o ator começa a dançar, e muitas vezes o espectador, ao invés de tentar olhar com os olhos do corpo, tenta continuar a olhar com os olhos da razão e fala: mas ali tudo perdeu o sentido, não entendi.  E não entender, em nossa cultura, é sempre um sinal de falta, de falha, de perda. Não ser entendido é muitas vezes considerado o suplício maior a que um ser humano pode passar, muito mais do que não ser amado. Incoerências?

Muito mais do que resposta, as questões de Barthes me provocam perguntas: em seu livro A aula, o autor escreve que “esse objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a linguagem – ou para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua.” (BARTHES, p.12).  Pergunto-me se a conexão do teatro com o texto teria provocado essa sensação de poder, de um discurso digamos “autorizado” pela língua. Qual a autoridade de um texto? Quando se desloca o teatro do centro do texto, quando se retira o discurso que avaliza o poder à cena, se provoca uma fragilidade proposital no ‘discurso’ teatral? O que representa o poder quando some o discurso?
Quando a palavra ganha a voz e perde o discurso, perdendo aparentemente a coerência para ganhar o canto, no que ela se transforma que não em voz humana? Onde ainda a palavra falada, não organizada em discursos ou escrita ainda é poder: no amor, na língua entre os amantes? Na família? Na terapia? Na aula ? Em que lugares de nossas vidas ainda temos a voz como princípio anterior à palavra, ao discurso, voz enquanto ponto de contato entre pessoas?

O que seria então, no teatro ou na vida, o cultivo da fragilidade? O que é contrário ao poder: a invisibilidade, a inconsistência, o anonimato? Quando escolho a ausência do poder do discurso da língua, o que isso provoca no outro que me assiste? Desconfiança? Quando algo me parece muito livre, isso me provoca medo? Qual a minha real capacidade de abdicar do poder da palavra?

Em minhas reflexões sobre o processo de elaboração de A Menina Boba, penso na palavra desproteger-se.  A conquista de uma linguagem sonora, que transita entre a palavra, o canto, a música, o ruído e o texto pode fazer parte de uma busca minha por desproteger-me: aposto em uma linguagem própria, que está pautada na fragilidade de um experimento, escolho não procurar abrigo nas linguagens instituídas (da música 'séria', do texto que organiza a língua linearmente), escolho estar em um terreno instável que vai revelar seu próprio poder talvez se pesquisado com afinco.

Barthes fala do poder associado à linguagem, principalmente às linguagens instituídas, e me pergunto se a busca por um conhecimento auditivo não seja o desejo de recriar linguagem, mesmo que esta outra modalidade seja frágil, individual, irrepetível e escorregadia na tentativa de sua estruturação completa.

Penso que muitas buscas por dramaturgias teatrais pautadas na escrita do corpo, da voz, buscas empreendidas por mulheres ou homens que se interessam por aquilo que é certas vezes incompreensível,  pode criar complexidades sem se preocupar em reproduzir cânones ou falhar em uma acepção unilateral de acerto ou erro. Isso, vale frisar, não é nenhum mérito. Muitas vezes é considerado um demérito até: o quanto nos é permitida a fragilidade hoje?

Volto ao meu armário bagunçado. Meu espetáculo, nascendo aos olhos do público essa mesma semana, e eu me abrindo ao olhar do outro na cena, enquanto me fecho para essa escrita privada de voz, em meu quarto silencioso.  São os sutiãs brigando com as xícaras, as toalhas soterrando o piano que insiste em soar.