quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015


Matular: verbo intransitivo afetivo

Barbara Biscaro




É emblemático o fato do nome do Grupo Matula Teatro se relacionar com comida: matula que nutre, que aplaca uma fome, que preenche um vazio, que sustenta o corpo e a alma. As atrizes do Matula inventaram um novo verbo: em meu dicionário matular vai virar verbete; matular – verbo intransitivo que significa preencher, acolher, acalentar, dar à vista e aos ouvidos nutrição para um dia mais delicado, uma existência minimamente mais afetuosa.

O acalento é uma coisa delicada, pequena. No mundo de hoje o pequeno, o delicado, o suave não possui mais espaço: o espetacular, o grande, a pirotecnia dos sentidos é aquilo que confere valor às coisas. Olhar nos olhos de uma atriz, experimentar uma melancia embaixo da árvore, ouvir um poema ao pé do ouvido não são coisas valorosas hoje em dia. É pequeno, comezinho demais pra ser atribuído um valor. Eu nunca morei em casa; a goiaba caindo do pé suicidada de tanta madureza e uma conversa boa debaixo da jabuticabeira não fazem parte do meu imaginário infantil: talvez por isso esses momentos me encantem em um grau tão elevado. Fico embriagada de delicadeza e do cheiro adocicado das goiabas espatifadas.

O percurso do Matula me parece um percurso de atrizes. Profundamente interessadas nos outros, tiveram os olhos de olhar para fora de si e engolir mundos tão áridos (a rua, o campo, a periferia, o exílio) para regurgitar na cena pequenos universos condensados. Em tantos anos de vivência e reflexão no Projeto Vértice e na rede internacional The Magdalena Project, nos perguntamos continuamente: será que existe uma particularidade da produção cênica das mulheres? As respostas não se sustentam, apenas ganham novas perguntas, tais como: o que seria essa “mulher” que estamos falando? O estereótipo oferecido pela cultura, os processos do corpo que se ligam a aspectos únicos como a maternidade, a sexualidade que se manifesta como identidade a um primeiro olhar desavisado?

As atrizes do Matula, em sua condução, incorporam o cuidado, a nutrição e a beleza como procedimentos em arte – mas isso não significa que seja uma condução tipicamente feminina, já que tal coisa não existe, é um estereótipo. Isso apenas significa que nossa sociedade deu às mulheres a possibilidade de se manifestar por esses canais e elas têm exercido sua autoridade e seu poder através da espera, nutrição e acolhimento, uma forma de poder que eu, sempre tão combativa em meus procedimentos, invejo profundamente. Mesmo falando de mundos tão duros, capazes de estraçalhar o mais rígido coração, as atrizes do Matula me olham com aquela franqueza da mãe que diz às filhas e filhos: é isso que é o mundo, mas chega mais perto coração, senta ao meu lado – tem a tristeza mas podemos rir dela, tem a dureza mas tem uma alegria ali no fundo que nos permite ainda brincar. Só uma mãe muito madura e experiente pode oferecer isso. Se você está acostumado a ser tratado aos gritos, a ser chacoalhado para poder sentir algo diante da anestesia do mundo, matular vai lhe parecer, a um primeiro momento, morno e sem graça.  Vai parecer banal. Mas não se engane: após viajar o mundo todo, embriagar-se das sensações mais arrebatadoras, a pergunta que fica é: como sustentar a beleza em mim o tempo todo, como instalar a delicadeza em meu peito no cotidiano massacrante?

Daí vem o Matula, e ensina. Conduz o olhar nesse pequeno. Abre sua casa, seu coração e sua alegria em um gesto de generosidade. As atrizes sempre em busca, não me ensinam pelo produto do espetáculo, me ensinam pelo percurso da vida. É notório que artistas se movem pela inquietação diante do mundo, por um querer dizer. Mas é notório também que o teatro reside no como, e não no o quê. Como falar, mostrar, conduzir, receber e oferecer é o grande nó górdio de nossa profissão. Nesse sentido, ver significado no pequeno, para mim, é o desafio do momento em que vivemos na feitura da arte: em tempos de escassez de dinheiro, de incentivo, de ética, de água e de compaixão, o discurso muda, as formas de arte mudam. Se todos aspirarem à grandeza dos recursos e da matéria, brigaremos entre nós e afundaremos diante do peso das cenografias engenhosas e dos grandes orçamentos.

Bem, digamos que eu sou muito suspeita para falar disso. Adepta do espetáculo que cabe na mala e você pode carregar pelo mundo, me enquadro nessa categoria de gente viciada em gente, de gente que faz teatro para poder ter um motivo para encontrar os outros. Mas, com o perdão da piada, inventemos o teatro orgânico (na onda da salada e das frutas): feito em casa, pelo vizinho, aquele grupo de pessoas que mora ali na rua debaixo e é artista. Não minha senhora, eles não aparecem na televisão, não são daqueles de pedir autógrafo. Mas eles te acolhem na sua sede, eles te oferecem poesia e a tal melancia debaixo da árvore. Não basta? Por que ainda nesse mundo o espaço dessas pequenas delicadezas é tão restrito e maltratado? Por que não conseguimos atribuir um valor econômico a essas coisas que, assim como o alimento que sustenta o corpo, são partes do cotidiano capazes de dar sustento à alma, aplacar a solidão e o medo?

A movida do novo projeto do Matula, que deseja abarcar a vila em que está instalado e seus moradores no seu cotidiano de feitura da arte entra nesse critério. Tal projeto, para mim, aborda as raízes daquilo que muitas vezes não paramos para nos perguntar: para quem fazemos teatro? Quais as pessoas que gravitam ao meu redor, que se alimentam do que eu faço? Quais os modos de sobrevivência possíveis ao mudarmos de modelo de produção? Essas são perguntas continuamente discutidas dentro da rede Magdalena: como criar modos de sobrevivência e sentido nos mais diversos contextos em arte, como sair do centro e não sofrer com o estigma da periferia, do menor, do desimportante. Discursos e práticas de resistência. Não são absolutamente discussões de mulheres, mas são discussões que vejo continuamente serem encabeçadas por mulheres no teatro. Aquelas que se perguntam sobre o sentido das coisas e as respostas que encontram se refletem em suas estéticas, poéticas e modos de produção em teatro.

Doces resistências, conduzidas por mãos amorosas. Matulando, @s artistas do Matula preenchem um mundo. Prestam-se ao exercício da delicadeza, muitas vezes abrindo mão de uma identidade ‘única’ na direção de uma multiplicidade característica: somos muit@s, gostamos de pipoca com melancia, não tivemos medo de mudar com o tempo.

Para conhecer mais do Matula: http://grupomatulateatro.com/