Presença e silêncio
Por Marisa Naspolini
Dohter, que significa filha em inglês arcaico, é o nome do work in progress
que deu início ao Vértice Brasil – encontro e festival internacional de teatro
feito por mulheres – que aconteceu em Floripa no decorrer da semana. Uma
oficina conduzida pela diretora galesa Jill Greenhalgh durante as duas semanas
anteriores ao evento e frequentada por 10 artistas catarinenses investigou o
tema e criou perguntas e respostas pessoais sobre o que é ser/ter filha. Este
material foi pra cena e tornou-se poesia viva.
Jill Greenhalgh, assim
como várias outras atrizes/diretoras presentes no encontro, trabalhou
insistentemente com a escuta, com a percepção apurada do outro e do entorno,
com a confiança, com a presença. Teatro é arte do encontro. Esta é uma frase
que todos que exercem o ofício teatral conhecem. No entanto, são poucos os que
a compreendem e conseguem realizá-la de forma plena. Teatro é um ato de amor.
Não de um amor piegas, mas de uma troca generosa que envolve o espectador como
parte ativa da cena.
ensaio de Dohter. Foto de Gerusa Ansiliero |
Durante a semana, as participantes fizeram
oficinas, assistiram espetáculos, debateram temas variados, trocaram
experiências, consolidaram parcerias. A proximidade com a natureza certamente
ajudou a instaurar uma atmosfera vibrante. O mar plácido de Cacupé, as árvores
frondosas e um esplêndido bambuzal serviram de palco para Ofélias, Luisas e
Ladies Macbeth se posicionarem e ocuparem com autoridade seu lugar no mundo –
e no teatro.
Ponto de Encontro Pedagogias da Cena. Foto Gerusa Ansiliero |
O Vértice é um evento que está na terceira edição e é
ligado ao Projeto Magdalena, uma rede internacional de teatro contemporâneo
que busca dar visibilidade ao trabalho de mulheres criadoras e criar
oportunidades de trabalhos colaborativos entre artistas de diferentes
nacionalidades e práticas teatrais. Este ano o encontro investiu na relação
com os países do continente americano, com artistas de 10 países pensando
estratégias e desenhando conjuntamente parcerias artísticas. Na performance de
abertura, Dohter, o público entrou na sala semiescura, levemente iluminada por
pequenos pontos de luz, e encontrou nichos formados por fotografias antigas,
documentos pessoais, tapetes, tecidos, móveis, espaços construídos quase como
altares em homenagem ao que de mais sagrado pulsava naquele lugar. Em uma
parede ao fundo, um vídeo dialogava com o ambiente, apresentando imagens e
sons inusitados, que incluíam canções antigas, sapatinhos de bebê e um rádio
de mesa. Sobre pequenos tablados irregulares envoltos por uma cortina branca,
10 atrizes desenhavam ações no espaço enquanto falavam, cantavam ou apenas
silenciavam. Durante vinte e poucos minutos, uma centena de pessoas mergulhou
em relatos, memórias, biografias densas e ao mesmo tempo delicadas. Vozes e
olhares se cruzaram, sorrisos e lágrimas surgiram nos rostos da plateia.
Presença.
Maria Luisa Porah em Dohter. Foto de Gerusa Ansiliero. |
Alguns dias depois, no espetáculo Ave Maria, uma atriz
prepara seu espaço de trabalho em silêncio. Uma tábua de passar roupa, um
varal, uma cadeira, uma boneca, um pedaço de jornal. Um ser com cabeça de
caveira atravessa a sala. Sua presença potente irradia no ambiente. Seus olhos
parecem vivos. A atriz repassa suas ações, veste o personagem e a si mesma.
Outras caveirinhas proliferam pelo espaço: pintadas e estampadas em roupas e
em tecidos, objetos, caixas, até um bebê caveira surge do cenário. A atriz
Julia Varley, do renomado grupo dinamarquês Odin Teatret, homenageia em cena a
atriz chilena Maria Canepa, morta em 2006.
Silêncio.
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