sexta-feira, 27 de setembro de 2013

 Parceiras

por Barbara Biscaro


Li o livro As Parceiras, da autora brasileira Lya Luft, em meados de 1999, ainda adolescente. Desde a primeira leitura (e a essa leitura se somaram dezenas de outras vezes que reli o livro em um curto espaço de tempo), o livro causou-me um impacto indescritível: o universo frágil e solitário tecido pela autora, através das memórias de Anelise - a narradora do livro – aderiu-se a mim quase instantaneamente. De repente, senti-me completamente identificada com as tramas dolorosas, tristes, incongruentes, como se houvessem ali pistas importantes a serem seguidas, sentimento compartilhados não através de uma identificação factual, pragmática; eu me identifiquei com um não sei o quê, que misturava a beleza da linguagem articulada de Lya com a trama cheia de histórias que povoaram a minha mente por muito tempo naquela época.

Nada no livro me remete à minha história pessoal; mas a narrativa de As Parceiras, com suas mulheres solitárias, magoadas, insolúveis me transferia para um universo que eu reconheci, amei e, de certa forma em meu exercício adolescente de ver o mundo, padeci. Uma amiga muito querida e próxima compartilhava essa paixão, e escrevíamos cartas sobre o livro, tínhamos planos de montar uma peça de teatro sobre o livro (na época havia recém começado a freqüentar aulas de teatro). Catarina, a avó e matriarca da família exercia um grande fascínio sobre mim: a loucura, a solidão, a juventude esvaída. Era como se assuntos longínquos do meu cotidiano da época (maternidade, casamento, amor, envelhecimento, morte) tivessem se instalado em meu sótão particular, e cumprissem um tempo de gestação de sensações, ideias, pistas sobre a mulher que eu me tornaria no futuro. A escrita, as palavras de Lya, os universos evocados, tudo isso se concretizou, mais tarde, como uma espécie de lente, através da qual enxerguei o mundo por um tempo e teci uma subjetividade emaranhada, minha afinal.

É impressionante o impacto que um livro pode provocar em uma pessoa, lido em uma determinada época de sua vida. A partir de uma conversa sobre os encaminhamentos futuros do Projeto Vértice nessa semana, o livro de Lya Luft tornou-se assunto: estávamos buscando um sub-título que tivesse a ver com a palavra parceria, e o livro me veio à mente e entrou na conversa, encontrou ecos em Marisa também. Parceria, parceiras. No livro, as parceiras são “duas velhas caspentas” que jogam com a sorte das personagens em um tabuleiro imaginado por Anelise: as parceiras são a vida e a morte, jogando uma espécie de xadrez em que peças são adicionadas e eliminadas do tabuleiro, vida e morte emaranhadas, aparceiradas, indistinguíveis.

Nossa ideia de parceria, no Vértice, se situa em outro universo: aquele do contato, dos modos de estabelecer relação com outras pessoas, outros lugares, compartilhando ideais, sonhos, ações baseadas em alguns princípios em comum, em provocações que podem desembocar em universos distintos, mas de certa forma, aparceirados. As parceiras, talvez nesse outro imaginário, são aquelas que caminham juntas, seja por toda uma vida, seja por alguns minutos; olhando no dicionário, me deparei com a seguinte definição de parceira: “a pessoa com quem se joga ou dança”; isso me pareceu incrível. Jogar, dançar, ações concretas que dependem de parceiros que, imersos e juntos, se permitem viver outra lógica, construir novos mundos, mesmo que durem uma canção. A parceria talvez não tenha a ver com duração, mas com a qualidade do tempo vivido junto: conexão que não se estabelece por vias muito claras, tempo que depois revivido na memória vai ser percebido como instante longuíssimo, como um não sei o quê que deixa marcas, em sua banalidade povoada de estímulo. Assim como foi lembrar do livro de Lya Luft. Cheguei em casa, e reli o livro quase sem perceber que lia: porque eu relia, eu lembrava das palavras sem ler, eu via frases inteiras decoradas pelo meu coração adolescente passeando na frente dos olhos: eu reli um tempo da minha vida, eu reli momentos banais que me atravessaram de forma muito mais marcante do que eu poderia suspeitar. Talvez hoje, a trama, as palavras tenham outro impacto em mim: mas as memórias do meu corpo do tempo em que esse livro era meu mundo, essas sim são inesquecíveis, entranhadas.


"Por que não morremos num período assim? Antes que tudo comece a esboroar. Nem sei se é no fundo ou na superfície que começa a erosão. A primeira tristeza não partilhada. A primeira solidão em que se vira as costas e, ao voltar, não se encontra mais a presença reconfortante. Apenas outra solidão de costas. A consciência alerta: está acabando, está acabando. Talvez não ainda o amor, mas a alegria está acabando. O resto vem depois". Todo o cortejo (LUFT, p. 103, 1990).

Referências:
LUFT, Lya. As parceiras. São Paulo: Sicilano, 1990.

"parceira", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/parceira [consultado em 26-09-2013].

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