Récita – tudo aquilo que chama a atenção, atrai e prende o olhar
por Barbara Biscaro
A cada estreia de um novo espetáculo, fica a sensação de nascimento e morte. Nascimento de algo novo, um pedaço de você que surge a partir de um processo intenso e transformador, que desloca algo que parecia encaixado e que agora deve se re-configurar no corpo. Eu, particularmente, não vejo sentido em fazer teatro que não seja para se transformar. As possibilidades que o trabalho com o teatro oferece de potencializar aquelas coisas que nunca surgiriam se não fossem provocadas, mexidas, questionadas sempre me fascinou. O movimento é o principio de tudo: de um corpo/voz que se desloca no espaço, de uma ideia/sensação que surgiu um dia quase banalmente e se configura como mundo, lente para ver a realidade.
Por outro lado, não acredito em teatro que deseja mudar o público: o espectador sente aquilo que sente, que deseja, vê e ouve aquilo que pode. Sim, ver um espetáculo pode mudar a vida de alguém. Mas se não mudou a visão de mundo do ator em cena primeiro, se não deslocou o corpo e as sensações desse ator para lugares ainda não explorados, aí as possibilidades de comunicação se tornam diferentes – nem melhores, nem piores – apenas diferentes.
O processo de construção do Récita – tudo aquilo que chama a atenção, atrai e prende o olhar foi e tem sido um privilégio, como artista-criadora. Do meu desejo inicial, diversas pessoas embarcaram comigo em uma exploração de coisas que eu também desconhecia. A parceria de cena e musical com Fernando Bresolin me ensinou muito. Só um vínculo de confiança pode ligar dois atores-musicistas em cena, e esse vínculo foi profundamente respeitado e cultivado desde o início. Das primeiras tentativas de encaixar o repertório de Weill e Brecht na formação para voz e violino até o amadurecimento musical que conquistamos nessa estréia, foram meses de trabalho – muitas vezes um trabalho sutil – pois para nós não bastava somente acertar as notas ou o andamento: contar, comentar, rir um do outro, dançar, surpreender-se, mover um ao outro, tudo isso deveria estar contido em cada trecho de música vivida. Pois diferente da ideia de execução musical - na qual aparenta que a música está de um lado e o musicista a executa, do outro lado, para nós, essa experiência deslocada tão comum na música não poderia servir – tinha que ser música vivida mesmo, entranhada na pele, mesmo se em muitos momentos nos deparamos com as limitações técnicas da voz e do violino.
A construção visual do espetáculo concebida por Roberto Gorgati suscitou e vem suscitando diversas imagens: precário, empobrecido, sintético, decadente. O universo das duas figuras em cena deveria evocar a decadência e o grotesco inspirados nas figuras dos mendigos produzidos por Mr. Peachum (A ópera dos três vinténs – Weill/Brecht 1928), personagem de Brecht que fabricava mendigos para ganharem a vida em Londres, ganhando uma devida comissão como ‘agenciador’ a miséria alheia. Questionar a estética do belo no universo da música clássica, do universo das divas (e divos) e do poder social/cultural que a música erudita inspira era uma das metas da pesquisa – tendo como ponto de partida as canções de Brecht e Weill, que já contém em si esses universos paradoxais. Da aparente simplicidade que se vê em cena, uma complexidade crítica foi tecida por trás, alimentando o vazio da cena. A elaboração se deu através do tempo, dos materiais, dos atores – sem a fabricação da decadência, Gorgati buscou no simples e na síntese os elementos para compor a visualidade da cena.
O processo de preparação corporal veio de um desejo antigo de concretizar uma parceria com a atriz Claudia Sachs. O universo do melodrama, do cômico e do grotesco foi construído através de sua condução, dando o devido espaço para que a loucura pudesse ocupar a cena. O tempo do jogo, a construção da relação, o desenho do corpo no espaço, tudo isso foi sendo construído em sala de ensaio, com uma condução rigorosa e generosa. Cláudia semeou aquela centelha de loucura que faltava para definitivamente pularmos da mera execução musical para habitar uma cena povoada de passado, presente e futuro. Descobrimos um mundo juntos, e esse mundo além de decadente e cruel, era lírico, delicado, amoroso e limítrofe – nos limites entre a vida e a morte, entre o banimento e a acolhida, entre a solidão e o outro que nos sustenta.
Explorar os limites entre a música e o teatro, desde sempre tem sido minha pesquisa. A voz cantada e falada em cena, para mim, deve ser não uma questão meramente técnica: deve ser uma entrega, um desejo, uma busca. A imersão no universo do grotesco trouxe descobertas técnicas e estéticas importantes no campo da criação vocal: como contar uma história, como transbordar a voz para que o jogo possa ser mais forte do que a técnica. Como lidar tecnicamente com questões como o apoio vocal ou a afinação imersa em um jogo contínuo, que não dá tempo para ser pensado, apenas sentido, compartilhado.
Além disso, mergulhamos em um universo no qual a voz e o violino teimam em caminhar para bem longe da cultura das salas de concerto: sonoridade de vagabundos e errantes, de artistas de rua, a voz e o violino estão presentes em diversas culturas populares que usam de um virtuosismo errante para cantar suas desventuras. A sonoridade, se por um lado ainda virtuosa (volumosa, aguda), prima não pela perfeição do timbre ou pela constância: prima mais ainda pela comunicação, pelo desvelamento da alma – criando novas formas de virtuosismo. Brecht e Weill entraram nessa mistura como os elementos agregadores: criando um universo em comum e uma geografia do grotesco, com suas cidades imaginárias e seus personagens de moral e costumes duvidosos, o espetáculo busca na forma épica uma dramaturgia que não prioriza a condução de uma história ou a linearidade, mas sim, a capacidade de mergulho em cada canção e o modo de transitar das figuras em cena na condução dessas experiências – cada canção encerra um mundo, e mostrar que esse mundo é inventado é uma das funções das figuras. É o recital de música muito teatral, é o teatro em que a música é presente demais: é uma récita deslocada, fronteiriça, estranha.
A sensação de morte fica por conta da certeza que uma estréia desencadeia um novo processo: para fora da sala de ensaio, em contato com o público, o espetáculo começa uma nova história. Para longe da sensação de conforto ou de lógica que o processo desencadeia, permanecer em cartaz, fazer o espetáculo ter vida longa e manter todos os elementos que fizeram do processo vivo e pulsante é um desafio e um prazer como artista.
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