segunda-feira, 19 de maio de 2014


Sobre malas, heranças e presenças

Por Barbara Biscaro



Arrumar as malas para viajar é uma tarefa muitas vezes complicada. No aeroporto, em uma dessas situações de espera que esses locais nos obrigam de vez em quando, comecei a pensar que o limite de bagagem imposto para o viajante – além de respeitar uma necessidade técnica relacionada ao peso do avião e afins – propõe um exercício de escolha imposto a cada pessoa que se propõe a se deslocar. Ao mover-se de um lado para o outro, você tem que selecionar objetos, roupas ou pertences que obedecem a critérios tanto relacionados à necessidade (como calcinhas e escova de dentes) quanto a outros fatores mais intuitivos ou caóticos, a fim de organizar em um espaço definido essas coisas que nos rodeiam e chamamos de ‘nossas’.

Uma residência artística pode ser encarada como uma viagem: aqui no caso me refiro à experiência de seis dias intensivos com a atriz cantora e diretora Linda Wise (França) realizada no Vértice 2014. Mergulhar no universo técnico e no imaginário estético/artístico de uma artista por esse período demanda não só o desejo de ‘conhecer’; demanda um desejo de viajar para um lugar que só existe com aquela condução, construído com aquelas pessoas reunidas naquele tempo e espaço. Não é nada turístico, portanto: os registros empreendidos nessa jornada são construídos em movimento e se relacionam intimamente com cada um, se constituindo muito além de uma mera reprodução ou revisitação - como as intermináveis fotos de viagem que às vezes colecionamos, imóveis.

Nesse sentido, viajar com Linda foi uma grata experiência. Todos trouxeram suas malas – conhecimentos técnicos, necessidades, desejos, canções, textos, memórias – e fomos convidados a deixar o excesso do lado de fora e entrar somente com o essencial. Mergulhar leve – possibilitando um nado suave e livre – essa foi a ordem do dia.

Tomar todo o tempo do mundo para abrirmos nossas bocas, ouvidos, mãos, peitos. Tomar todo tempo do mundo para ouvir o outro, pacientemente. Tomar todo o tempo do mundo para chorar e desse choro perceber que havia um excesso de peso que insistimos em carregar em nossas bagagens pessoais. Perceber quando é hora de ir em frente, desafiar-se e quando é hora de parar e não exigir tanto de si mesma.

A condução de Linda é marcada por um equilíbrio entre manter o foco no grupo e em trabalhos individuais, nos convidando a experimentar. Uma condução delicada e bela; a presença de Linda representou para mim a união entre dois mundos: de um lado o universo pessoal da artista e suas questões de interesse estético e técnico (como a conexão entre voz e musicalidade, entre os campos do teatro e da música). Do outro lado a herança do trabalho vocal junto ao Roy Hart Theatre, que é uma das grandes referências em pesquisa vocal para a cena no contexto europeu do século XX – começando lá em meados de 1930 com o alemão Alfred Wolfsohn.

Essa mistura entre o passado e o presente, entre herança e presença, foi uma das características dessa experiência. Não deixar as malas tão pesadas a ponto de não poderem ser carregadas por aí, nem as deixar tão leves a ponto de não perceber aquilo que nos conecta com nossos locais de origem, nossas raízes (por mais nômades que sejamos). Mas como se sabe, é difícil saber arrumar as malas. Tarefa engenhosa, que talvez se aperfeiçoe ao longo de uma vida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário