quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Setembro

Setembro
 por Barbara Biscaro

Os últimos dias mostraram os capítulos finais de uma tragédia anunciada. O trágico dos acontecimentos não foram as mudanças (necessárias e bem-vindas nos diversos ciclos da vida), mas o teor ideológico e político que as motivaram e o desfecho bizarro dessa ação que se constitui devidamente denominada e sem máscaras: um golpe.

É interessante para mim perceber que o último texto publicado por nós foi em janeiro deste ano. Refletia um cansaço cheio de desejo de luta. Porém, o processo traumático que passamos como nação desde o início desse ano, a meu ver, preencheu e deu a tônica de nossas vidas de forma incontornável. Vimos o MinC ser extinto e restabelecido em caráter golpista, vimos diariamente retrocessos na área da cultura e da educação, percebemos como questões básicas dos direitos humanos não estão consolidadas em nosso país, protestamos e ocupamos real e virtualmente, ouvimos os pronunciamentos mais estapafúrdios, preconceituosos e retrógrados possíveis da boca de politicxs, amigxs, familiares, donxs de quitanda e paneleirxs em geral.

Setembro chega, carregando aquela data em que projetamos uma ação do Vértice nos idos de um janeiro brando (e ignorante do que confrontaríamos nos meses seguintes). Vivemos, pelo menos em Florianópolis, meses em que o protagonismo da luta das mulheres contra o golpe foi um alento e uma esperança. A mulherada na rua foi um presente em tempos de guerra, foi um alento frente à constatação in loco e televisionada de que homens brancos, ricxs e violentos definem as prioridades e os rumos de nossas vidas enquanto nação.

Sinto ao meu redor pessoas que, se antes estavam engajadas em lutas maiores ou em projetos ousados, agora travam batalhas pessoais conta o empobrecimento, o medo, a instabilidade, o adoecimento. Sinto quase todxs ao meu redor tentando se reinventar de algum modo, agora de acordo com as novas regras e projeções de um jogo perverso.  2016 marca o início de uma prova de fogo e de sobrevivência não só para artistas, educadorxs e ativistas em geral: serão tempos em que precisaremos nos reinventar continuamente, fazer as contas com nossos legados e imaginar as possibilidade de ação após uma ruptura como essa.
 
Não desistimos de realizar uma ação do Vértice ainda em 2016, apenas entendemos que o tamanho e o caráter desta ação precisará ter o tamanho que os nossos corações mandam. Precisará ter o aconchego e a vitalidade que nossos corpos possam aguentar. Precisará de igual dose de cura e de provocação. Precisará contemplar o silêncio e dançar na batucada. Precisará do coletivo e do individual vibrando na mesma frequência para que o esforço faça sentido.

Por isso, o texto de hoje não faz nenhuma promessa. Apenas sabe que, as mulheres e homens que puderem responder a um chamado do Vértice esse ano, serão aquelxs que precisam estar aqui conosco. Tantxs outrxs estarão em coração e mente. Tantxs outrxs em legado e guia. Pensaremos em algo, com certeza. Na perspectiva de uma luta longa, de uma travessia desgastante, o Vértice 2016 tem que ser, para nós e para quem vier, o lugar de se refazer, de arriar as armas por um momento, ganhar uma massagem e um beijo na testa e ouvir das outras mulheres que juntas continuaremos: em silêncio ou cantando, nas ruas ou nas casas, na cena ou na vida.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016



 do it yourself

  
Barbara Biscaro



Sento em frente ao computador, escrevendo mais um projeto para o Vértice. Ao longo dos últimos dez anos foram dezenas e dezenas de projetos cuidadosamente elaborados, exaustivamente trabalhados para tentar viabilizar financeiramente um projeto que faz parte da vida, que não é somente trabalho, mas uma forma de descobrir meu entendimento do mundo, da arte, do cotidiano, das relações.

O ano de 2016 entra no horizonte de nós quatro, organizadoras do Vértice Brasil, de uma forma diferente. Anos pares são os anos Vértice na última década. A caixa de e-mails já começa a pipocar com mulheres de todo o mundo perguntando as datas, como podem estar aqui, contando seus projetos e mandando material de trabalhos. A sensação de vazio deixada por 2015, ano em que as exaustivas horas de escrita de projetos e trabalho de produção não se converteram em um centavo sequer, tem sido explorada por aqui não como uma sensação de fracasso, mas uma sensação de balanço e de escuta: nós, que estamos continuamente reavaliando e medindo entre nós o sentido do Vértice, nos vimos em um momento particularmente povoado por extremos.
2015 foi um ano explosivo para as questões de gênero e feminismo no Brasil. As conquistas simbólicas que estes temas ganharam na internet e redes sociais, hashtags como #meuprimeiroassédio, ver milhares de mulheres empunharem a palavra feminismo com orgulho e propriedade, sem ranço ou rancores, lutando contra Cunhas e Bolsonaros, renovou a crença de que projetos como o Vértice são necessários no mundo atual. De que a invisibilidade está pouco a pouco se tornando visível, que os ativismos estão forçando a nossa percepção de mundo a se alargar. Quando tais questões aparecem, trazem à tona todo o ódio, a violência e o estarrecimento que o tocar em uma ferida tão profunda pode produzir. Incontáveis as vezes em que tivemos que nos defender publicamente por privilegiarmos a produção artística de mulheres, por acreditarmos em um trabalho em rede que possa renovar o sentido da circulação de trabalhos e conhecimentos artísticos em um mundo dominado por uma cultura que associa o sucesso de um@ ao obscurecimento d@ outr@.
Pois bem, chegamos em 2016. Um ano que já começa exausto, vazio, desgastado. O ano em que não temos nada a oferecer financeiramente falando: não podemos pagar cachês, não podemos viabilizar a presença de ninguém aqui conosco. Podemos mal pagar nossos alugueis, quanto mais trabalhar três ou quatro meses do ano gratuitamente para ver acontecer mais um Vértice. Dentro desta perspectiva nasce um sonho ligado a uma tática quase de guerrilha. Explico por que.
Porque a coletividade é o que salvará qualquer um de nós de uma suposta crise financeira. Abrir as janelas, olhar nos olhos d@ vizinh@ ao menos uma vez. Nos juntarmos, dividirmos nossas perdas e nossos ganhos nos torna mais fortes dentro da ideia de vulnerabilidade como força. A guerrilha significa agregarmos energias em um ativismo que se faz mais do que necessário em tempos obscuros. Não parar, para nós, não significa produzir a qualquer custo um outro evento de sucesso (e chorar escondida no armário, ficar doente, contrair dívidas), mas nos perguntarmos qual o “sucesso” que queremos alcançar. E dessa pergunta fazer nascer um Vértice cheio de escuta e afetividade.
Estamos sonhando alto para 2016: promover um ajuntamento de artistas mulheres em setembro, na cidade de Florianópolis, que acreditam no espaço que o Vértice construiu e que desejam compartilhar seus saberes e suas visões de arte e de vida. Dessa premissa, sonhamos um Vértice ativista. Não vão haver espetáculos, mas compartihamentos de processos, de visões de mundo e de arte que possam caber nos espaços e no tamanho que poderemos proporcionar, que vão tocar nos temas das violências, das invisibilidades e das ausências. Sonhamos em juntar estas artistas incríveis de todos os cantos do Brasil e do mundo e criar uma ação, uma performance, um manifesto, uma invasão: dezenas de mulheres levantando suas vozes e mostrando seus corpos no meio da cidade. Sonhamos em comer na rua, em dançar ao ar livre, em abraçar uma cidade que nos afasta. Queremos um Vértice punk, do it yourself. Porque se não for assim, não vai ser nada.
Nós estaremos aqui. Quem vai nos acompanhar nessa jornada? Não queremos materiais de espetáculos. Queremos presenças com desejo de passar uma semana criando e compartilhando uma visão de mundo a ser construída aqui, com muitas mãos e vozes. Para mim esse é o legado do Vértice: centenas de mulheres e seus desejos, dispostas a olharem umas para as outras.
Acho que finalmente entendo o que é conservadorismo: é aquela tentativa hercúlea de fazer voltar ao normal o que a vida acabou por virar de cabeça para baixo. É quando mentimos para nós mesmos que nada mudou ou que uma hora vai voltar ao que era antes. É quando nos inflexibilizamos e perdemos a oportunidade de viver no mundo que nos cabe agora, gastando energia em nome de ideais e desejos que já não possuem lugar. Os ativismos feministas e de gênero estão colocando a nossa percepção de sexualidade, de violência, de amor, de sociedade e de mundo de cabeça para baixo. Ou a arte e os modos de produção em que acreditamos se deixam permear por este estilhaçamento ou nos tornaremos as conservadoras que tanto criticamos ao longo da vida. Estar em crise significa ser obrigada a fazer escolhas que podem nos salvar. Que venha o Vértice 2016, um vértice extremo que une linhas díspares de afetividade e guerrilha, de precariedade e ousadia.